O que acontece no Congo não fica no Congo

Numa cimeira da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) que contou com a presença de nove chefes de Estado e governo não houve qualquer condenação ao papel do Ruanda e de Paul Kagame nos mais recentes desenvolvimentos no leste da República Democrática do Congo.

Por: Fernando Lima | Zitamar News

A reunião, realizada em Harare na sexta-feira e que marcou o “baptismo internacional” de Daniel Chapo como presidente de Moçambique, conteve os apelos do presidente congolês Félix Tshisekedi (que participou via virtual) para uma condenação ao Ruanda e a Paul Kagame, mais uma evidência do emergente papel do líder do pequeno país dos Grandes Lagos em matérias de segurança regional e continental.

Um comunicado da SADC em 21 pontos “notou com preocupação os ataques recentes do M23 e da RDF (exército ruandês) contra as FARDC (forças armadas congolesas) e a SAMIRDC (missão militar da SADC)”, numa reacção muito ténue à tomada de Goma pelo M23, a cidade mais importante da província de Kivu do Norte. No avanço para a cidade, os rebeldes do M23 abateram 13 soldados sul-africanos da SAMIDRC e, segundo explicações dadas à Zitamar News, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa tem agora a penosa missão de solicitar os “bons ofícios” de Paul Kagame para ter de volta os corpos dos militares mortos e os feridos que estão confinados numa base junto a Goma.

A pedido das Nações Unidas (ONU), o Ruanda recebeu, antes do fim de semana, na fronteira Gisewyi, 280 mercenários romenos que combatiam ao lado do exército congolês na zona de Goma. Os mercenários, recrutados pelas empresas Agemira RDC e Asociatia Ralf refugiaram-se numa base da ONU para não serem capturados pelo M23.

Os soldados sul-africanos poderão ser evacuados por terra, por território ruandês, dadas as dificuldades em meios aéreos na zona de Goma e a danificação da pista do aeroporto durante os bombardeamentos efectuados por forças do M73. As SANDF (exército sul-africano) tinham uma base militar junto à pista de aviação.

O M23 é um grupo rebelde congolês composto essencialmente pelos antigos milicianos designados por banyarwanda ou banyamulenge, congoleses de etnia tutsi vivendo tradicionalmente no leste do país junto ao lago Kivu. Relatórios feitos pelas Nações Unidas notam uma grande proximidade e apoio do governo ruandês ao M23. Os rebeldes dispõem de mísseis terra-ar, drones, artilharia pesada de longo alcance e material de intercepção e interrupção de comunicações adversárias.

Na argumentação securitária ruandesa, o M23 opera um “cordão sanitário” de proteção junto à sua fronteira contra as forças do FDLR (Frente Democrática de Libertação do Ruanda), um grupo formado por hutus acusados de envolvimento no genocídio de 800.000 ruandeses em 1994.

Os banyarwanda/banyamulenge desempenharam um papel activo do apoio ao movimento rebelde de Yoweri Musseveni no Uganda em 1980-1986 e depois na contra-ofensiva militar e ascensão ao poder de Paul Kagame no Ruanda. Os banyamulenge têm hoje posições sensíveis no aparelho securitário e militar do Uganda e do Ruanda. No Congo, o M23 reclama a integração dos banyarwanda como nacionais com cidadania plena. Relatório internacionais também indicam que a actividade do M23 patrocina a exploração de minerais estratégicos no Kivu como o coltan, o litium e o ouro de que se beneficiam o Ruanda e o Uganda.

Em Moçambique, sectores de opinião hostis ao antigo presidente Filipe Nyusi, incluindo dentro do partido Frelimo tentam colar o M23 às forças jihadistas da Answar Al Sunah, o braço do Estado Islâmico operando em Cabo Delgado. Na mesma colagem forçada, o apoio tácito ruandês ao M23, descrito por esses sectores como “grupo terrorista”, pressupõe um “jogo duplo” do Ruanda e Paul Kagame em Cabo Delgado onde as RDF actuam ao lado do exército de Moçambique.

Há de facto uma ligação jihadista do Estado Islâmico entre Moçambique e o Congo (DRC), mas esta é representada pela Aliança das Forças Democráticas (ADF). Alguma informação escassa libertada pelos serviços de informações moçambicanos indicam a presença de jihadistas moçambicanos treinados na RDC e outros nacionais da região operando em Cabo Delgado.

Os desenvolvimentos em Goma e a aparente incapacidade diplomática para lidar com a situação podem sugerir novos desenvolvimentos regionais.

A movimentação do M23, com o apoio das RDF, para Bukavu na província do Kivu do Sul ou o avanço sobre Kinshasa como sugeriu Corneille Nangaa, o líder da Aliança do Rio Congo (AFC), uma coligação alargada de 17 partidos políticos e milícias armadas, incluindo o M23. Tshisekedi, ele próprio, está muito vulnerável politicamente e o seu exército tem tido uma deplorável performance nos confrontos do leste do país. O recurso a mercenários europeus é mais um embaraço e uma reminiscência dos anos 60 e do ditador de triste memória Mobutu Sese Seko.

O conflito na Europa (Ucrânia-Rússia), no Médio Oriente e as indefinições em África da nova administração de Donald Trump nos Estados Unidos, criou a “oportunidade quase perfeita” para Paul Kagame e o Ruanda reforçarem o seu estatuto de jogador regional e continental, onde as RDF se vêm afirmando como parceiro credível nas forças de manutenção de paz. Apesar do desespero dos sectores críticos de opinião em Moçambique, as RDF em Cabo Delgado parecem, para já, imunes às ondas de choque que vêm do leste do Congo, incluindo a sensível cooperação e apoio da União Europeia.

Ao contrário do que aconteceu anteriormente, Kagame parece agora passar ao lado das condenações e pressões internacionais. A começar pelos movimentos no interior da própria SADC.

Fonte: Integrity

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