ONG acusa Governo de aprovar leis que restringem direitos dos angolanos

O Movimento Cívico Mudei de Angola publicou esta semana um relatório trimestral sobre a violação dos direitos humanos registados, entre Julho e Setembro, no país. No documento, a ONG dá conta das constantes limitações do espaço cívico, as perseguições arbitrárias, os obstáculos à realização de manifestações contra o regime, sublinhando que “o Governo não tem sido capaz de dar resposta ao ambiente social de pobreza e fome, o que acaba por contribuir para os comportamentos extremos”. Jaime Domingos, jurista da ONG Mudei, denuncia a “aprovação de instrumentos de controlo e repressão que visam proteger o poder político e restringir os direitos dos angolanos”.

RFI: Quais são as conclusões deste relatório trimestral?

Jaime Domingos, jurista da ONG angolana Mudei: A situação piorou com a aprovação de leis inconstitucionais que visam proteger o poder político, em detrimento daquilo que é a estabilidade nacional. Além da agressividade policial, há, de certo modo, um número crescente de leis aprovadas que visam minar a participação cívica do cidadão na vida pública do país. Todavia, neste relatório temos um único caso de execução sumária, em Benguela, e que vitimou Elizabeth Capitia. A jovem, 25 anos, foi alvejada por uma bala vinda da arma de um suposto agente do SIC-Serviço Criminal de Angola- enquanto se encontrava na rua.

Qual é o seguimento que a justiça angolana está a dar a este caso?

Até ao momento, o que as autoridades fizeram foi custear o óbito e fora disto já não deram mais nenhum seguimento. A família continua desamparada e, neste exacto momento, já não há certeza se o suposto agente do SIC está mesmo detido ou se já posto em liberdade. Há esta incerteza e insegurança jurídica por parte da família da vítima.

No relatório denunciam a limitação do espaço cívico, obstáculos arbitrários à realização de manifestações, detenções arbitrárias, perseguições, abusos de poder. Quem são as vítimas dessas violências?

São todos ativistas cívicos que têm sido vítimas do fechamento e impedimento da realização de qualquer acto de protesto em Angola. A Polícia Nacional usa como fundamento as leis que têm sido aprovadas regularmente no país. A Assembleia Nacional está mais preocupada em aprovar leis que visam reprimir ou impedir o cidadão de participar activamente na vida pública do país. Um desses exemplos é a Lei dos Crimes de Vandalismo, Bens e Serviços Públicos ou a Lei sobre a Segurança Nacional.

Leis que, de resto, já foram declaradas inconstitucionais pela Ordem dos Advogados de Angola…

Essas leis foram declaradas inconstitucionais pela Ordem de Advogados de Angola e pelas organizações não-governamentais angolanas. Já remetemos um conjunto de petições, abaixo-assinados para impugnar estas leis, uma vez que atentam contra os direitos e violam a Constituição da República de Angola, sobretudo no seu artigo 57, que tipifica o princípio da proporcionalidade com seus três segmentos. No entanto, estas leis mantêm-se e é com base nelas que a Polícia Nacional impede qualquer exercício de manifestação em Angola.

De que forma se concretizam estas restrições?

A Polícia Nacional impede as manifestações, detém os manifestantes, apropria-se dos seus bens, com o argumento de ser uma manifestação não autorizada. A questão é: quem autoriza uma manifestação num Estado de Direito democrático? É a lei ou as pessoas que respondem a ordens superiores. Aqui estamos numa clara violação da lei e ninguém se pronuncia. Nem a Procuradoria-Geral República, nem o Provedor de Justiça e muito menos o Ministério da Justiça e Direitos Humanos.

No passado mês de Agosto, as forças de segurança detiveram a jornalista correspondente da Lusa e dois jornalistas da Rádio Despertar, uma rádio privada, por estarem a cobrir uma manifestação cívica ordeira e pacífica, violando o direito de liberdade de imprensa. O Sindicato dos Jornalistas de Angola pronunciou-se contra as detenções, condenando a atitude da polícia e aconselhou os companheiros de profissão a avançar com uma acção crime contra os agentes.

Os jornalistas avançaram com uma queixa-crime?

Há um processo em curso, não faz parte deste relatório, mas em data oportuna poderemos também tornar esse posicionamento público.

No relatório, afirmam que a liberdade de expressão parece ser submetida a critérios seletivos e que critérios a que se referem?

O primeiro critério é o partido político, ou seja, aquelas actividades políticas de massa, desencadeadas por militantes do partido hegemônico que governa o país, são sempre permitidas e protegidas pela Polícia Nacional.

Por exemplo, duas manifestações podem sair à rua no mesmo dia. Uma mobilizada por militantes do MPLA sem qualquer impedimento pela Polícia Nacional, com a cobertura total dos órgãos de comunicação social públicos, pagos com dinheiro de todos nós e, do outro lado, cidadãos, que também usam os direitos civis e políticos, serão impedidos, agredidos, torturados e muitas das vezes submetidos a julgamentos sumários-criados ou fabricados- por terem participado ou realizado uma manifestação.

No entanto, vivemos num país onde a Constituição da República é para todos, sem desprimor de etnia, idade, crenças, cores partidárias, nem género. Mas lamentavelmente, a aplicação destes direitos fundamentais, em Angola, só é permitida para quem é militante do MPLA. Um Cidadão comum é impedido de manifestar e rotulado de arruaceiro.

Está a afirmar que há uma intenção clara do Governo em impedir as manifestações contra o regime?

Sim, há uma intenção clara! Quem for detido numa manifestação, nos termos das leis já supracitadas, a medida será sempre maior do que um cidadão, militante ou não, que for encontrado a extraviar um bem -num domicílio ou no espaço público- ou até de um político envolvido num escândalo de corrupção.

Que recomendações deixam às autoridades angolanas?

A recomendação que deixamos às autoridades angolanas é que cumpra as leis e respeite a dignidade da pessoa humana. Nós continuamos a acreditar que acima da pessoa humana não existe um outro bem mais importante.

A Constituição da República de Angola estipula os direitos fundamentais e o país é signatário de tratados e convenções internacionais. Só resta às autoridades cumprirem esses pressupostos legais para se efectivar, aquilo que chamamos de um Estado de Paz. Um Estado onde a polícia inspire amizade, confiança ao cidadão e não intriga ou medo.

Consideramos que se deve começar a investigar esses casos [execuções sumárias, perseguições, detenções arbitrárias]. Neste relatório, o Ministério Público já tem instrumentos para o fazer, assim como com outros relatórios feitos no passado. Tecnicamente, são suficientes para se desencadear uma acção criminal, uma vez que a denúncia já existe. A Procuradoria-Geral da República tem de investigar esses casos e responsabilizar os infractores.

O relatório sobre violações dos direitos humanos foi assinado pelas associações Mizangala Tu Yenu e Handeka, em representação do Movimento Cívico Mudei.

Esta quarta-feira, 27 de Novembro, a Amnistia Internacional publicou o Relatório Promessas quebradas: Manifestantes entre gás lacrimogéneo, balas e bastões em Angola. No documento, a ONG denuncia um “padrão de uso excessivo e desnecessário da força pela polícia durante o mandato do Presidente João Lourenço”.

A Amnistia Internacional considera que as autoridades angolanas devem “assegurar a prestação de contas pelos agentes da polícia responsáveis por mortes, ferimentos e traumas causados a dezenas de pessoas durante manifestações entre novembro de 2020 e junho de 2023, e a polícia deve parar de atacar manifestantes e respeitar e defender o direito de todos à liberdade de reunião”, lê-se no relatório.

Fonte: RFI

Compartilhar

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *