Solidariedade selectiva: Um cancro maligno que afecta a elite e toda sociedade angolana

Vivemos num mundo que exige de todos nós atitudes que possam privilegiar o colectivo, uma vez que o nosso universo se abre a inúmeras oportunidades para fazermos o bem e ajudar a quem precisa. É neste espírito que nasce a solidariedade.

Por: Mauro Da Silva Silva

A solidariedade é uma daquelas qualidades que certamente sem ela, a humanidade teria menos hipótese de sobreviver. A mesma manifesta-se de várias formas, com suas acções sempre assentes no amor, afecto, no espírito da compreensão e entreajuda, através de atitudes que melhoram a situação e conduzem ao bem-estar dos outros, ou ainda, através da compreensão empática, ou seja, da capacidade de compreender e se colocar na condição do outro. É considerada por muitos como sendo a maior herança e manifestação da humanidade.

Infelizmente, com o passar do tempo, grande parte dos angolanos passaram a adoptar diferentes tipos de “solidariedade”, dentre elas a chamada “SOLIDARIEDADE FAKE”, “SOLIDARIEDADE SIMULADA” e a “SOLIDARIEDADE SELECTIVA”, esta última que constitui o principal foco de interesse neste artigo.

O presente artigo pretende objectivamente explicar em que consiste a solidariedade selectiva, apresentando exemplos concretos.

CONCEITUALIZAÇÃO

SOLIDARIEDADE

Segundo Pricila Elspeth (2022), a SOLIDARIEDADE é uma qualidade relacionada à bondade, empatia e ao amor. Ser solidário é se sensibilizar com a dor, sofrimento de outrem e estender-lhe a mão para ajuda-la de alguma maneira.

SOLIDARIEDADE SELECTIVA

Na opinião de Josivânia Amorim (2020), a SOLIDARIEDADE SELECTIVA é aquela manifestada por pessoas que mostram ter compaixão meramente por determinados grupos específicos, com os quais guarda alguma afinidade… Seja o seu grupo familiar, do trabalho, da igreja, político, escolar entre outros.

Tendo em conta os dois conceitos acima apresentados, compreende-se que a solidariedade, de modo geral, implica uma atenção e preocupação com uma causa, outra pessoa, povos, nação ou país. É fruto do espírito que permite a entreajuda.

CONTEXTUALIZAÇÃO

Uma publicação no Facebook com o título: “QUEM MATOU O DR. LAURINDO VIEIRA”?, cuja autoria foi atribuída ao denominado Poeta Ukwanana, muito partilhada na mesma rede social e nos grupos do WhatsApp, despertou mais uma vez a minha atenção, não propriamente pela positiva ou por estar a apelar a solidariedade dos angolanos em virtude da morte de alguém, que tinha um grande status e papel social, e que coincidentemente, foi meu professor durante dois anos na Universidade. Mas sim pelos verdadeiros motivos que estão na base daquele apelo que visa especificamente “convidar” a sociedade angolana a juntar-se numa causa solidária, exigindo que se faça justiça, ou seja, que os verdadeiros mandantes do crime que vitimou o Dr. Laurindo Vieira sejam apanhados, detidos, julgados e condenados, como se o mesmo fosse a única vítima de um crime bárbaro como este. Relembrando que até em alguns locais, foram feitas vigílias, noutros, as mesmas vigílias foram proibidas gerando um assunto e não assunto ao mesmo tempo. Numa fracção de segundos, quase todos os story dos angolanos tinham a foto do Dr. Laurindo Vieira. Não que ele não merecesse tais homenagens. Claro que merecia. Mas se aquelas homenagens públicas, sem medo ou receio de perder o emprego, de ser despromovido ou de sofrer qualquer outra represálias foram feitas no intuito de mostrar que as mesmas estavam a exigir que se fizesse justiça simplesmente porque a vítima foi o Dr. Laurindo, penso que a nossa sociedade está bem pior do que nunca.

Confesso que tudo isso me fez pensar seriamente e reflectir que sempre que o crime em Angola atinge um indivíduo pertencente a ELITE ANGOLANA, FAMOSOS, ou qualquer outra pessoa com laços muito estreitos a eles, há uma tendência para um APELO deste tipo, como se as mortes de Juliana Cafrique, Inocêncio de Matos, Cassule e Kamulingue, entre outros não importassem, ou fossem insuficientes para desencadear um APELO DE SOLIDARIEDADE COLECTIVA ou EM MASSA, já que o objectivo é exigir que seja feita JUSTIÇA, porque tudo indica que quando a vítima é “ANÓNIMA”, o que se pode exigir, pelo menos no programa FALA-ANGOLA, é apenas “JUSTÍCIA”, porque parece que a JUSTIÇA como tal, é uma propriedade privada ou restrita a um pequeno grupo de indivíduos que se sentem mais “ANGOLANOS” e “PATRIOTAS” em relação aos demais.

Infelizmente, muitos de nós, angolanos, mesmo sem informações, para compreender criticamente a solidariedade selectiva que tem sido feita, tomamos um lado e, prontamente, decidimos ser “humanitários” e solidários simplesmente porque quem morreu é o FULANO, SICRANO ou BELTRANO, pessoas bem posicionadas socialmente. Basta ver como ficam os cemitérios no dia do funeral destas pessoas.

A par disso tudo, rapidamente, nossas redes sociais são inundadas por mensagens de apelos, pedidos de orações e é comum nos depararmos com a famosa frase “PRAY FOR…” ou “WE ARE FULANO, SICRANO OU BELTRANO”.

A verdade é que muitas vezes nos solidarizamos com a tragédia que está bem longe de nós, enquanto que as tragédias que acontecem com os nossos familiares, vizinhos, amigos ou outras pessoas que são de facto muito próximas, menos desfavorecidas, vulneráveis e ignoradas muitas vezes político e socialmente, fingimos não ver.

Quem tiver dúvidas, basta olhar na forma que esta gente mostra tamanha indiferença quando a vítima é um dos “NOSSOS”. Muitos deles, podem até ser capazes de te dar algum apoio financeiro. Mas dificilmente serão verdadeiramente solidários com o seu problema, situação ou tragédia, ao ponto de arranjar formas para que a(s) pessoa(s) que te colocou naquela situação, ou que tenha morto um dos nossos, não volte a fazê-lo com mais ninguém. Essas pessoas, seriam capazes de te enviar o código de levantamento sem cartão, mas dificilmente estarão consigo em massa para exigir “JUSTIÇA” ou “JUSTÍCIA”.

Tais atitudes e comportamentos se assemelham com a forma que o ocidente IGNORA ou DESVALORIZA as guerras e outros conflitos em África, que provocam, inclusive, genocídio (Ex. RDC e Moçambique), disponibilizando biliões e biliões de dólares, por exemplo, na Ucrânia 🇺🇦, para criar, manter ou defender aquela guerra por ser do interesse deles e por estar naquele continente, quando existem países, que só precisam de 1 bilião de dólares ou euros para saírem da extrema pobreza que se encontram ou da dívida insustentável que têm.

Mas, por mais vontade que tenha de tocar neste assunto, não é sobre o ocidente que eu quero falar neste artigo. Eles são o que são. Os líderes africanos é que deveriam ter juízo.

Neste artigo…

Quero falar sobre o tipo de solidariedade selectiva que tem sido direccionada a pessoas que em condições normais, muitas delas, estariam nem aí diante do nosso sofrimento.

Quero falar do tipo de solidariedade selectiva no seio familiar, que permite apenas ajudar este ou aquele membro da família, ignorando muitas vezes, quase por completo, outro(s) membro(s) da mesma família mais vulneráveis e necessitados.

Quem nunca foi ou soube das ofertas ou presentes que aquelas pessoas que já têm muito dinheiro e condições recebem, quer seja em casamentos, chá de panela, aniversário, pedido, ou noutra ocasião festiva qualquer? Até muitos que não têm nada, seriam capazes de se endividar, simplesmente para fazerem “BOA FIGURA” oferecendo muitas vezes coisas caras, que a pessoa em causa já tem, ou nem precisa. Mas se for um outro parente, muitas vezes mais pobre e necessitado, procuram oferecer as coisas mais baratas possíveis, alegando que é tudo que podem fazer. E que não vão roubar só para lhe agradar.

Quem nunca soube da solidariedade selectiva entre irmãos da mesma igreja, principalmente se for para ajudar o Pastor, Ancião, Padre, Bispo, Apóstolo, Evangelista ou outro membro da direcção da Igreja, mas quando se trata de um outro irmão, se calhar muiiiiiito mais necessitado em relação as pessoas citadas, poucos são os que se predispoem em ajudar?

Quem nunca viu a solidariedade selectiva daquele membro da família, que tem mãos largas para ajudar pessoas desconhecidas, mais tem mãos pequenas para ajudar membros da sua própria família ou amigos, alegando que se os ajudar com muito mais, vão se tornar folgados?

Quem nunca teve um familiar que quando é convidado para contribuir para um evento ou para resolver um problema que envolve um parente mais pobre, necessitado e/ou mais desfavorecido, é capaz de dizer: “querem casar as custas dos outros. Se não têm condições, não façam filhos, não se casem! Ficam aqui sempre com as suas contribuições. O meu dinheiro não é para isso”. Porém, estranhamente, a mesma pessoa, no casamento do primo(a) endinheirado, quer também oferecer presentes caros.

Quem nunca teve um amigo, parente, colega ou vizinho, que se sente bem em emprestar dinheiro, o carro ou outra coisa qualquer de elevado valor a certas pessoas, porque sabe que estas pessoas também têm, e que eventualmente também poderão lhe emprestar no futuro?

Claramente exemplos não faltam para descrever a solidariedade selectiva!

E os paradoxos não terminam aqui. Pois, várias vezes nos revoltamos ao nos depararmos com as pessoas e/ou povos violentamente atacados particularmente no ocidente, mas desconsideramos as pessoas ou povos que morrem, diariamente em África, em particular em Angola, em decorrência da fome, dos excessos ou abusos e maus tratos das autoridades competentes, da letargia e morosidade do nosso sistema de justiça, do desemprego, da malária, tuberculose, atropelamentos, violações, estupros etc. que acontecem em toda parte do nosso país. Muitos angolanos morrem em decorrência do mau atendimento nos hospitais públicos e privados,
morrem em decorrência das péssimas políticas públicas vigentes no país, morrem em decorrência da violência provocada pelas disputas entre grupos ou gangues nos diversos bairros do país, crianças e adolescentes não são poupados e sempre encontram uma bala perdida no caminho.

Diante desta triste realidade, quantos “ILUMINADOS” conseguem se levantar para pedir ou apelar a solidariedade colectiva entre angolanos?

A verdade é que a solidariedade selectiva dos angolanos, pode até permitir lamentar as mortes que acontecem ao redor do mundo, em especial, aqueles que envolvem grandes individualidades do país, mas pouco se importam com as mortes que acontecem com milhares de angolanos vítimas de injustiças sociais e governamentais, e dos diversos crimes que afectam maioritariamente esta mesma franja, quer seja nas periferias ou no casco urbano.

Este tipo de solidariedade é aquela que define que causa deve ser considerada nobre e que causa deve ser ignorada ou esquecida;

Este é o tipo de solidariedade que permite ousadamente definir que vida tem mais valor, tal como referiu Jefferson Gabriel, ou ainda quem tem o direito à vida e a justiça.

Diante deste cenário, resta-me perguntar:

Quantas pessoas famosas e importantes neste país precisam de morrer, para que os angolanos se apercebam que a solidariedade ou suposta solidariedade entre angolanos não pode estar dependente de rostos e status sociais?

Quando é que vamos perceber que juntos somos mais fortes e que a união faz a força?

Quando é que vamos todos mentalizar que ninguém gosta assim tanto de viver de esmolas, de viver às custas deste ou daquele cidadão ao invés de ter aquilo que é seu por direito e/ou merecimento?

Quando é que vamos nos consciencializar que melhor do que oferecer cestas básicas, dinheiro ou outro tipo de ajudas a certas pessoas ou famílias desfavorecidas, é nos solidarizarmos verdadeiramente com os necessitados, no sentido de exigirmos junto as autoridades competentes maiores responsabilidades e responsabilização, para que estas pessoas não vivam na dependência de terceiros eternamente?

Quantas pessoas da elite angolana têm que ser barbaramente ASSASSINADAS, de preferência na via pública, para que o pacato cidadão se aperceba que o apelo a solidariedade colectiva dos angolanos não pode continuar a ser selectiva?

Quantos Dr. Laurindo Vieira têm que ser assassinados, para que um ou vários angolanos, emocionados, apelem a solidariedade colectiva para exigir justiça, como se as nossas vidas, vítimas e preocupações ao lado desta tragédia, não fossem importantes o suficiente para exigir justiça?

Quantos Dr. Laurindo Vieira terão que ser barbaramente ASSASSINADOS, para que muitos angolanos NON SENSE (SEM NOÇÃO), percebam que o crime sempre existiu, e que o Dr. não foi nem a primeira nem será a última vítima naquela via e naquelas condições?

Quantos Dr. Laurindo Vieira terão que ser barbaramente ASSASSINADOS, para que os angolanos percebam, que todas as Teorias de Conspiração que têm sido colocadas na mesa, por mais atraente e sedutoras que sejam, não nos devem motivar a se envolver em lutas como estas, simplesmente porque a vítima foi alguém da alta sociedade, porque se fosse o contrário, eles mostrariam uma total indiferença?

Quantos Dr. Laurindo Vieira terão que ser barbaramente ASSASSINADOS, até percebermos que a solidariedade tem ligação directa com o carácter, em virtude de tratar da coerência das atitudes, tal como referiu Josivânia Amorim?

Em suma, se o único motivo que leva muitos angolanos a mostrarem solidariedade colectiva é a morte de pessoas importantes, então, que haja MAIS ASSASSINATOS envolvendo pessoas que pertencem a elite angolana, uma vez que os outros assassinatos, praticamente, passam despercebidos ao lado desta gente, que por algum motivo, seriam capazes de juntar todas suas economias e paciência, para doar ao Elon Musk e ao Mark Zuckerberg, como se eles precisassem de facto das suas migalhas.

Att. Só me responsabilizo por aquilo que eu escrevo. Quanto a sua interpretação, é problema seu.

Autor: Mauro Faria Faria

Data: 18/02/2024

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