A revolução perdida de Sita Valles: 27 de Maio de 1977

Quem a conheceu em Lisboa, militando pelo comunismo, guarda dela a imagem de uma «passionária» empenhada com todas as forças na causa revolucionária. Quando o PCP começou a perder terreno em Portugal, Sita Valles decidiu voltara Luanda, terra onde a «vamp» da década anterior seria agora a dinamizadora da ala mais radical do MPLA. Para deter tanto activismo, foi preciso um pelotão de fuzilamento, mas, passados quase 15 anos, as autoridades de Luanda ainda recusam revelar o que se passou.

Por: Felícia Cabrita | Expresso/Revista, SÁBADO | 25 de Janeiro 1992

Sexta-feira, 27 de Maio de 1977, os sinos dobram em Luanda. De madrugada, populares e militares cercam o centro da cidade, ocupam prisões e quartéis, e exigem a Agostinho Neto que cumpra os estatutos do MPLA e afaste alguns ministros corruptos. Acreditam ainda que podem ganhar para a sua causa o Presidente da República. Mas a resposta não tarda, as tropas cubanas entram a matar e em poucas horas a casa fica arrumada. Sita Valles, que se celebrizara no movimento estudantil em Portugal, e aprendera as primeiras lições de marxismo-leninismo nas fileiras do Partido Comunista Português, tem a cabeça a prémio. É uma das cabecilhas do «golpe de estado». Por uns, é acusada de estar ao serviço do imperialismo, por outros, de ser agente secreto da KGB. Uma versão de Mata-Hari que entre lençóis decidia o destino do povo angolano. É fuzilada três meses depois, sentença assinada por Agostinho Neto, o poeta.

Sita Maria Dias Valles, nasce em Angola em 1951. O pai, Francisco Valles, de origem goesa, acabara de se licenciar em Portugal e partira rumo à colónia para fazer carreira. A família instala-se em Cabinda. O futuro sorri ao jovem engenheiro-agrónomo, enquanto na Europa o anti colonialismo ganha forma e António Salazar continua surdo aos apelos descolonizadores. Sita cresce sem contradições no meio da burguesia colonial. Desde pequena que abraça grandes causas, quer desempenhar um papel belo e nobre. Faz a sua primeira aliança com Deus, coloca pedras nos sapatos para se martirizar, não perde uma missa, é devota.

Sábado, 4 de Fevereiro de 1961, um grupo nacionalista, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), ataca em simultâneo duas cadeias e um quartel da polícia para libertar presos políticos. Os colonos pela primeira vez sentem-se em perigo. Sita vive agora em Luanda, num parque florestal onde o pai trabalha para os Serviços de Agricultura. A cidade está em estado de choque. As tropas portuguesas, acabadas de chegar, invadem musseques, e milícias civis incitam os soldados ao massacre. É a caça ao «turra». Os boatos crescem na capital, é anunciado um ataque em massa a Luanda. Sita conhece pela primeira vez o medo. Apela a Deus, espalha santos pelas portas e janelas. No terraço da casa colonial, coloca estrategicamente uma fila de soldados canonizados, que defendem a família dos «terroristas».

Mas o pânico inicial esmorece, e a adolescência traz a Sita novos modelos e referências. A moda dos anos 60 pega, ela usa mini-saias e botas altas, a sua beleza toma-se lenda, dá a volta à cabeça dos rapazes e desnorteia as famílias. Na Faculdade de Medicina, logo no primeiro ano, arrecada o título de Miss Caloira. Um colega, Luís Nolasco, toma-se de amores por ela, e a chama é tão intensa que o jovem vê os exames de fim de curso a andarem para trás. A mãe do rapaz procura-a e pede-lhe que se afaste de Luanda até as provas terminarem. Francisco Valles degreda-a com o irmão, Edmar, para uma missão no Quéssua, perto de Malange. Mas a rapariga não se habitua à alimentação frugal dos missionários americanos e envia uma carta ao pai clamando misericórdia. Os religiosos, que têm por hábito ler a correspondência alheia, não gostam da mensagem, e o estágio dos irmãos acaba mal.

Nos finais dos anos 60, chegam a Angola os ecos da revolta francesa de Maio de 68. Sita descobre as contradições da sociedade em que vive. Pertence ao grupo dos «cor-de-rosa», cor do seu jornal preferido, o «Comércio do Funchal» de Vicente Jorge Silva, que galvaniza estudantes da universidade luandense e desperta simpatias pela República Popular da China. No entanto, a luta pela independência de Angola marcha a lume brando. No próprio MPLA, anos antes, em 1963, nasciam dissensões. Viriato da Cruz, um dos seus fundadores, propõe a união com a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), mas Agostinho Neto discorda. Viriato é expulso e refugia-se na China.

As vítimas do 27 de Maio, designadamente Nito Alves (o líder), Pedro Fortunato, Bakalov, Monstro Imortal, Sita Valles, José Van-Dunem, David Zé, Urbano de Castro, Domingos Barros “Sabata” e Artur Nunes e ainda Júlio e Ilídio Ramalhete, dois gémeos funcionários da ex-DISA (polícia política)”. (DR)

Matias Migueis, vice-presidente do MPLA, que também defende a união dos movimentos, é abatido meses depois. O reforço militar português em Angola e as divergências entre os grupos nacionalistas faz com que percam terreno. Em 1971, Sita e um grupo de estudantes angolanos de origem portuguesa decidem-se. Partem para a metrópole para engrossar as fileiras dos grupos antifascistas que lutam contra o regime e a favor da descolonização. Em Lisboa, reencontra o irmão mais novo, Edgar, que partira um ano antes de Angola e se tornara militante do PCP. Em poucos meses, sacode as primeiras pinceladas maoístas, é recrutada pelo PCP e apregoa um novo evangelho. Os seus profetas são Marx e Lenine e a sua causa a revolução e a ditadura do proletariado. Participa de imediato no movimento estudantil, e é membro da associação estudantil da Faculdade de Medicina, de 1971 a 1974. «Ela não sabia viver com dúvidas, tinha certezas. Era uma prática, queria concretizar-se na acção», recorda o médico José Manuel Jara, então dirigente da célula comunista de Medicina. Alguns estudantes caem nas mãos da PIDE. O silêncio é regra de ouro, quem não resiste à tortura e denuncia é marginalizado pelos colegas. «Para a Sita, era pessoa a quem nunca mais se falava», diz Jara.

É uma época de fervor ideológico, o movimento estudantil digladia-se, fazem-se «julgamentos populares» de estudantes, estala a pancadaria. Nas Reuniões Inter associativas saltam para a arena as várias correntes políticas, e as acusações chovem: «revisionistas», «sectários» e «sociais-imperialistas» são os piropos recíprocos. Abatem-se as velhas amizades. Jofre Justino, colega de Sita em natação, no Clube Nun’Alvares, desde os sete anos, está agora num campo oposto: «Na altura eu era maoísta, e estava convencido de que era ela que orquestrava os golpes vindos da União dos Estudantes Comunistas (UEC) contra nós».

Sita celebriza-se no movimento estudantil, é uma activista política e destaca-se na UEC. Mas viver com ela é um inferno. José Camisão, hoje médico, cometera o erro da sua vida: largara Angola e o curso de Medicina a meio, e seguira-a para a metrópole. Ele não tem ideais nem acredita em revoluções. Filho da alta burguesia colonial, apenas alimenta uma fidelidade: Sita Valles. Vivem maritalmente num apartamento em Campo Grande, e ele quer a todo o custo não se ver envolvido nas actividades partidárias da companheira: «Não me metas nas tuas histórias, porque se um dia sou preso pela PIDE não tenho estofo e digo tudo.”

Conselhos que ela nunca seguiu. Transforma-o no motorista dos clandestinos do Partido, e a mala do seu carro é usada vezes sem conta para esconder panfletos, o que lhe vale uma vez um mandado de captura. Mas o pai, uma figura do regime, salva-o a tempo. O 25 de Abril apanha Sita em Moscovo, é a representante da UEC no congresso do Kom-sommol (organização soviética da juventude). «Regressou completamente fascinada por Brejnev», lembra Edgar Valles. E desconfia da revolução dos cravos. Dias mais tarde, reúne-se com alguns militantes da UEC num apartamento da Avenida de Berna. «Estávamos a discutir se o golpe era positivo ou negativo», recorda Jara, um dos presentes. Sita é das mais desiludidas, o desfecho não correspondia às lições aprendidas na cartilha marxista-leninista, a dita revolução não passava de golpe militar. Mas, rapidamente, o PCP recupera: afinal tinha havido apoio popular, logo, o golpe era positivo.

Um ano mais tarde, o socialismo parece levado por maus ventos. O PCP tenta segurar o barco, mas o país desfere-lhe um golpe profundo. Nas eleições de 1975 para a Constituinte, o PS obtém a maior votação, seguido de perto pelo PPD. Um dia, Jara dá uma boleia a Sita e ela confessa-se desiludida: «A revolução aqui já deu o que tinha a dar, já não há hipótese de o país se encaminhar para o socialismo.»

Em Angola, entretanto, a desgraça adi vinha-se. A Lisboa chegam rumores de que o MPLA se encontra desfeito. A guerra civil rebenta, os movimentos nacionalistas – MPLA, UNITA e FNLA – combatem-se. Tinham aprendido na escola colonial a intolerância política. Sita, que faz parte da Comissão Central da UEC, sendo considerada a número 2, depois de Zita Seabra, arruma as malas, acena a bandeira de «Che» Guevara e vai fazer a revolução para Angola. Zita e Álvaro Cunhal tentam dissuadi-la. «O PCP estava muito interessado nas relações com Angola, » mas achava que não devia mandar para lá estudantes, porque estes tendem sempre para o desvio ideológico», lembra a então líder da UEC. «Os quadros que enviámos para lá não eram estudantes». Porém, cegos e surdos às orientações do partido, estudantes comunistas partem para Angola. Mas não vão sozinhos. Jovens dos vários quadrantes da extrema-esquerda portuguesa seguem-lhes os passos, convictos de que vão puxar os fios do destino africano.

Cruza-se com os colonos que tinham perdido o lugar ao sol e corriam para a metrópole em pânico. A família Valles chegara na remessa. Maria Lúcia, a mãe, tentara convencer Sita a ficar: «Olha que te vão cortar em postas». A filha, como resposta, oferecera-lhe um livro e resumira-o: «Mãe, esta mulher perdeu um filho. Enquanto ele era vivo, não concordava com as posições dele. Quando ele morreu, começou a lutar pelos ideais dele.» Era A Mãe, de Gorki.

Sita Valles aterra em Luanda (no Verão de 1975. Agostinho Neto recusa-se a dialogar com Holden Roberto e Jonas Savimbi. Os Acordos de Alvor, onde os três movimentos tinham negociado, em Janeiro, um governo de coligação que preparasse o país para eleições gerais, caem por terra. Neto recebe apoios da Jugoslávia, armamento entra nos portos de Luanda e tropas cubanas ajudam-no a correr com os adversários. É a luta pelo poder total. A11 de Novembro, proclama a independência e reivindica o reconhecimento internacional. Mas o Presidente da República não está contente.

Era preciso consolidar a unidade do país, uniformizar, esmagar a divisão. E o MPLA, movimento constituído por várias tendências políticas, tem de arrumar a casa. Nito Alves, um dos heróis da guerrilha, agora ministro do Interior, é o homem de mão de Neto para combater as minorias. Começam as perseguições à Organização Comunista de Angola (OCA), com ligações à extrema-esquerda portuguesa, acusada de esquerdismo; e à Revolta Activa, liderada por Joaquim Pinto de Andrade, um dos presidentes de honra do MPLA até 1973, considerado agora um pequeno-burguês.

A Direcção de Informação e Segurança de Angola (DISA) instala-se e estende as suas malhas. Vicente Pinto de Andrade, da Revolta Activa, um dos muitos presos, recorda: «Agostinho Neto era um ditador, queria eliminar todos os grupos que lhe fizessem sombra, era incapaz de dialogar». Haverá uma só voz neste país, dizia o poeta-presidente.

Nas prisões, a tortura é sistemática. A história de Angola começa mal: em nome da revolução, a vida deixa de ter sentido. Sita sobe depressa nas estruturas do MPLA, apoiada por Nito Alves, que se deixa fascinar pelo dinamismo da «Passionária» angolana. Assume importantes funções no departamento de Organização de Massas, mas depressa cria ódios entre os velhos dirigentes do MPLA. Nas reuniões do Bureau Político, acusam-na de ser uma infiltrada do PCP para controlar Angola. E o MPLA expulsa todos aqueles que militaram anteriormente noutras organizações políticas, mesmo aliadas. Sita não escapa à exclusão, mas nem isso diminui o seu fervor revolucionário. A 4 de Janeiro de 1976, escreve aos pais e, para tranquilizar a família católica, anuncia o casamento com o angolano José Van Dunem, comissário político do Estado-Maior Geral. No entanto avisa-os: «Não interessa politicamente que divulguem o casamento, porque eu fui do PCP e ele é dirigente do MPLA. Isso compromete-o politicamente. O MPLA não é comunista.»

Em Moscovo, nesse ano, Nito e Van Dunem assistem com Cunhal e Fidel Castro ao 25º aniversário do PCUS. Passados meses, Nito perde o lugar de ministro do Interior. No MPLA cava-se novo fosso: de um lado, Neto e alguns velhos dirigentes, adeptos de uma via «terceiro-mundista», de características semelhantes à argelina e com aproximações à Jugoslávia; do outro, Nito, Van Dunem e Sita, fiéis à ortodoxia soviética.

A 8 de Fevereiro de 1977, nasce Ernesto, o primeiro filho de Sita e de Van Dunem. «Demos-lhe o nome de ‘Che’ em homenagem a Guevara», escreve aos pais. Continua defensora da causa do proletariado. E desconhece que a história revolucionária é de todas a mais sangrenta. «Nós, na altura, desconhecíamos o que se passava na URSS, pensávamos que o que se dizia era obra da propaganda», recorda Amadeu Neves, angolano, militante do MPLA, seu «compagnon de route» e hoje no Partido Renovador Democrático angolano. Em 21 de Maio, uma comissão de inquérito, nomeada pelo Bureau Político e dirigida por José Eduardo dos Santos, chega à conclusão de que há «fraccionismo» dentro do próprio MPLA. Nito e Van Dunem são expulsos do Comité Central nesse mesmo dia. À noite, José Mingas – irmão do actual embaixador angolano em Portugal, Rui Mingas -, chefe de operações da DISA, avisa a família Van Dunem de que vai haver muitas prisões e que Sita e o companheiro têm a cabeça a prémio. Começa a girândola que de novo mancha de sangue a história de Angola.

Nos dias seguintes, o grupo reúne-se e prepara a ofensiva. Mas nem todos estão de acordo quanto aos métodos a utilizar. Responsáveis das FAPLA (o exército angolano) pertencentes ao Comissariado Político são a favor de um golpe militar. Amadeu Neves encabeça essa linha: «Tínhamos os militares todos do nosso lado. Se fosse um golpe militar, teríamos tomado o poder em meia hora.» Mas Sita e José Van Dunem, fiéis ao espírito bolchevique, não concordam: «Tem de ser uma insurreição popular. Os militares irão na retaguarda para defender o povo». Têm um osso duro de roer pela frente: as tropas estrangeiras. «Os cubanos sabiam muito bem que havia um grande descontentamento em Angola, e nos contactos que mantivemos tinham prometido que não iam interferir nos assuntos internos do país», garante Amadeu Neves. Num encontro na casa da família Kitumba, o conselheiro da embaixada da URSS repete sete vezes: «Só vos apoiamos se não for um golpe militar».

Na madrugada de sexta-feira 27 de Maio, populares e militares enchem as ruas de Luanda e tomam quartéis e prisões para libertarem presos políticos. Enquanto Sita, nos musseques, incita os operários à revolta, duas mulheres, Virinha e Nandy, dirigentes do destacamento feminino das FAPLA, dirigem o assalto à cadeia de S. Paulo. Hélder Neto, chefe da INFANAL – serviço de Informação e Análise – órgão paralelo à DISA, encontra-se desde as seis da manhã na prisão e é apanhado de surpresa. O feitiço virava-se contra o feiticeiro. Vítor Jeitoeira, um colono português recuperado pela DISA, hoje reformado e negociante de terrenos em Portugal, conta: «Hélder Neto tinha ordens para, nesse dia, começar a prender os adeptos de Nito. Estava lá a preparar a prisão para receber uma nova vaga de gente.»

Quando Hélder Neto percebe que está a perder o controlo da situação, liberta alguns presos e entrega-lhes armas para defenderem a cadeia. É um deles, Sambala, um cantor popular detido por delito comum, que o prende pelos braços, quando ele abre as portas da cadeia para negociar com os populares. Nandy, grávida de oito meses, toma a cadeia, e Hélder suicida-se. Já não se sabe quem é quem. Sambala, ávido de acção, encosta os presos da OCA e da Revolta Activa à parede e carrega a arma. Vicente Pinto de Andrade vê a vida a andar para trás. «Foi a Nandy que o impediu de nos matar. Abriu-nos as celas, deu-nos comida. Era uma espécie de 25 de Abril».

O actual secretário-geral do PRD angolano, Luís dos Passos, num jipe com seis militares, dirigia a tomada da Rádio Nacional, enquanto os populares que saíam dos musseques engrossavam a coluna. Mantém-se em contacto com Sita e Van Dunem, que têm por missão a mobilização popular: «Ela estava optimista, as pessoas dos musseques estavam todas a responder ao apelo.»

Às oito da manhã, ouve-se um locutor na Rádio: «Dizem que o major Nito Alves é fraccionista, mas os verdadeiros fraccionistas são os que estão no poder e querem fechar os olhos ao nosso mais velho camarada, Agostinho Neto. São os camponeses e os operários que devem guiar o pais.» Quando Saidy Mingas, o outro irmão de Rui Mingas, fiel a Neto, entra no quartel da Nona Brigada para tentar ganhar as tropas, é preso pelos soldados. Ele e outros militares contrários à revolta são levados por populares para o musseque Sambizanga.

O Governo leva tempo a reagir, Neto está sem tropas. Mas, de repente, a situação muda. Na rádio, entre o choro de mulheres, ouvem-se gritos cubanos. O Presidente tinha ganho o exército de Fidel, e, com Henrique dos Santos, nome de guerra Onambwe, director-adjunto da DISA, punha cobro à insurreição. «Conduzi a única tropa organizada do MPLA que restava para controlar o golpe», conta o ex-responsável pela polícia secreta. Os soldados abrem fogo e os manifestantes dispersam, ficando pelo caminho muitos mortos e feridos. Para Sita, que se encontra num Comando de Operações, a notícia do esmagamento da revolução chega como um dobre de finados. E prepara a fuga.

Pelas 16h00, a cidade está controlada, e os manifestantes procuram refúgio. Mas no Sambizanga ouvem-se tiros. Saidy Mingas e Eugênio Costa estão entre os comandantes mortos. No começo da tarde, reina o silêncio na cidade. Na Rádio Nacional ouve-se uma voz vacilante. Neto resume os acontecimentos que por poucas horas abalaram Luanda. Ele próprio está confuso: «Hoje de manhã, pretendeu-se demonstrar que já não há revolução em Angola. Será assim? Eu penso que não… Alguns camaradas desnortearam-se e pensaram que a nossa opção era contra eles. (…) Temos países amigos que não compreendem bem a nossa opção.» Era o recado à URSS. No dia seguinte já o seu discurso mudara. Publicamente, anuncia que alguns comandantes do MPLA tinham sido mortos pelos «nitistas». Entre eles, cita Hélder Neto. Jeitoeira, um operacional da DISA, varia na versão. Assiste ao enterro do chefe da INFANAL, vê o corpo, não tem dúvidas de quem partiu o tiro. A própria viúva de Helder confidencia-lhe: «Ele suicidou-se, mas o MPLA não quer que se saiba.» Criam-se vítimas para justificar o massacre.

Para Rui Mingas, que perde dois irmãos nos dois lados da barricada, a história está por resolver. «O Saidy era uma pessoa muito odiada no MPLA. Sabia demais…» A presença de Eugénio Costa entre as vítimas também causa embaraços. Jeitoeira diz de sua justiça: «É estranho, porque nós sabemos que na noite anterior ele tinha estado com alguns fraccionistas a preparar o golpe.» Nesse mesmo dia, centenas de pessoas são presas, e fuziladas. É a caça às bruxas. Nos jornais de Angola lê-se: «Os criminosos serão fuzilados.» E Agostinho Neto, publicamente, pronuncia a sentença: não haverá perdão. No dia seguinte, às 19h00, o responsável do cemitério de Calema está a jantar com a família quando recebe um telefonema estranho.

O seu chefe de repartição ordena-lhe que volte ao cemitério e aguarde. O cacimbo ensopava-lhe a roupa quando, de madrugada, param no portão dez carrinhas celulares. Carlos Jorge e Nelson Pinheiro (Pitoco), elementos da DISA, chefiam a expedição, que estaciona junto a uma vala comum de 200 metros. Mal os prisioneiros se apeiam, soam as rajadas das «kalachnikov». Alguns ainda têm tempo de gritar: «Salvem-me que eu não fiz nada». Pitoco, chefe do pelotão de fuzilamento, atende rápido ao apelo das vítimas: «Esse é perigoso, fica para mim.» Um dos coveiros aplana a terra da vala com um tractor.

Ainda se ouvem gemidos. O chefe do cemitério está aterrorizado e Pitoco avisa-o: «Em Angola não pode haver contra-revolução, por isso, se falares, vais fazer companhia a estes.» A própria DISA abate elementos das suas fileiras. Não há julgamentos nem advogados presentes. José Mingas, com 33 anos, é um dos 52 nomes que fazem parte da lista dos condenados à morte. Acusação: «Aproveitando-se do cargo de chefia que ocupava, desviou documentos classificados que entregou aos cabecilhas fraccionistas. Manteve contactos conspirativos com Zé Van Dunem.» Outros morriam apenas porque confessaram ter lido e divulgado as Treze Teses de Nito Alves, panfleto em que o autor acusa o MPLA de não cumprir os estatutos e denuncia ministros corruptos.

A norte de Angola, na aldeia Kaleba, Francisco Karicukila esconde Sita Valles. Não se lembra do ano em que nasceu, mas sabe que em 1966 já lutava pela libertação de Angola. Foi preso e torturado pela PIDE no campo de São Nicolau, onde conheceu Zé Van Dunem, companheiro de clandestinidade. Depois da independência, a UNITA por duas vezes arrasou a aldeia, matou mulheres e crianças. Agora os seus sonhos caíam por terra, os antigos perseguidos vestiam-se de perseguidores, calavam os seus próprios companheiros. Mas Sita ainda não perdeu as esperanças. «A revolução é assim: lenta», dizia-lhe. Luanda tornava-se palco de horrores.

Todos os que se haviam cruzado com Sita têm a vida por um fio. As cadeias enchem-se. Costa Martins, ex-ministro do Trabalho de Vasco Gonçalves, exilado em Angola desde 25 de Novembro de 1975, é novamente embrulhado pela História. Publicamente, é acusado de pertencer aos serviços secretos franceses e de estar do lado dos fraccionistas. Mas, na cadeia, acusam-no de pertencer ao PCP e de ser espião do KGB. É um misto de tragédia shakespeariana e ópera bufa. Na sala de tortura, elementos da DISA, portugueses e angolanos, apuram técnicas. Carlos Jorge, Pitoco e Eduardo Veloso espancam-no durante um interrogatório algo insólito: se Spínola presidia ao Conselho de Ministros em Portugal, se chamou corrupto a Neto, se José Eduardo dos Santos é das suas amizades… Os objectos de tortura são um chicote e um espigão de ferro, aos quais chamam Marx e Lenine. O capitão de Abril ainda guarda no corpo as cicatrizes, e não percebe como sobreviveu. Um dia levam-no de jipe para uma praia. Guardas armados até aos dentes ordenam-lhe que saia para apanhar banhos de sol. Mas o militar, que conhece a traição de longa data, recusa-se a sair.

Em Junho, Sita Valles assina a sua sentença. De Kaleba, envia, através de um filho de Karicukila, uma mensagem para a família Van Dunem. Entretanto, o seu irmão Edmar já tinha sido preso, e a mulher dele, que recebe o bilhete, aposta numa troca de vidas e entrega a missiva ao director-adjunto da DISA. «Na carta, ela dizia à secretária de Agostinho Neto para pedir aos soviéticos que lhe preparassem a fuga», garante Onambwe. O mensageiro é preso, e depois de torturado encaminha os militares para a cubata de Karicukila.

A 16 de Junho, Sita e Van Dunem entram de mão dada no Ministério da Defesa. Emagrecera, mas a paixão não abrandara. Amadeu Neves, que também lá se encontra preso, recorda-a nada intimidada. Quando alguém lhe oferecia comida, respondia: «A um comunista não se dá leite, dá-se porrada.»

Entretanto em Portugal o PCP, acusado por muitos de ter mexido os cordelinhos em Angola, lava daí as mãos. Em Agosto, as Edições Avante publicam uma brochura do MPLA. É a versão oficial do 27 de Maio. «Sita Valles, vinda de Portugal, da União dos Estudantes Comunistas, sem o mínimo conhecimento das realidades da nossa luta e do nosso Movimento, é colocada por Nito Alves à testa deste esquema e imediatamente toma nas mãos o comando das operações.»

Edgar Valles, que saíra de Angola meses antes do 27 de Maio, é contactado por Pedro Serra, do sector intelectual do PCP. «Pediu-me para suspender a militância e não aparecer nas sedes, a fim de evitar especulações.» Os 4200 exemplares do seu livro A Crise no Apartheid, que estava para ser editado nesse mês pela Seara Nova, foi destruído. José Garibaldi, responsável da editora, explica: «Agostinho Neto tinha muitas amizades entre os seareiros.» Todas as portas se fecham. O almirante Rosa Coutinho, antigo membro do Conselho da Revolução, assegurou ao irmão de Sita que nada havia a fazer. Pelas informações que lhe chegavam, ela já tinha sido executada. A extrema-esquerda portuguesa salta para a arena e crucifica Sita. Apresenta-a como a mentora política do «golpe de estado» e traça-lhe um perfil de Mata-Hari. A conspiradora dormira pelo menos com dois dirigentes do MPLA: Nito e Van Dunem.

No jornal «Página Um», a 4 de Agosto, lê-se: «A conspiração nasce no quarto.» E, no mesmo número, são publicadas cartas dos «criminosos reaccionários», em que estes admitiam ter dado ordens para matar comandantes do MPLA. Seguem a versão oficial, perdem a memória dos métodos utilizados pela PIDE para arrancar confissões. Dias antes, às cinco da manhã de 1 de Agosto, sem julgamento, depois de ter sido torturada e violada por vários homens da DISA, Sita Valles, aos 26 anos, morria. Recusa a venda e olha o pelotão de frente: «A cabra parecia que não queria morrer», gabava-se nessa noite um português das fileiras da DISA. Ao lado de Sita, compartilhando o mesmo destino, está José Van Dunem. Não se sabe onde foram enterrados: os seus cadáveres estão numa das muitas valas comuns, cavadas de norte a sul do país para afogar a rebelião.

Durante esse ano, jovens e velhos militantes do MPLA, ministros e chefes militares, desaparecem. Um tribunal militar, chefiado pelo coronel João Neto (Xieto), chefe de Estado-Maior Geral, decide quem deve ou não sobreviver. A corrupção campeia: guardas das prisões e chefes de operações da DISA saqueiam e apropriam-se de casas e carros dos presos.

A madrugada de 23 de Março de 1978 fica na História como «a noite das estrelas». Quando Pitoco entra na cadeia de S. Paulo, Costa Martins sabe como tudo vai terminar. Era a última vez que veria Edmar, o irmão mais velho de Sita. A sangria estende-se a todas as prisões de Luanda. Jeitoeira vê as listas dos condenados que chegam do Tribunal Militar. Nos cadernos não constam acusações, só o nome próprio e, ao lado, o nome de guerra das vítimas. Eram assinadas pelos dois chefes da DISA, “Rodrigues João Lopes (Ludy) e Onambwe, e pelo Presidente da República. «Nessa noite, Neto mandou matar 300 pessoas. A partir daí não se matou mais ninguém» – «flash-back» de Jeitoeira. No dia seguinte, as carrinhas voltam cheias de sangue e os mercenários continuam a apagar os vestígios do crime.

Em 1978, Neto sabe que tem os dias contados: os médicos diagnosticam uma cirrose a este bebedor inveterado. O Presidente sacode à última hora as culpas que lhe são atribuídas e entrega alguns dos seus fiéis seguidores. Ludy e Onambwe, os chefes da polícia secreta, caem em desgraça. No mesmo ano, são nomeadas comissões de inquérito para averiguar os «excessos» cometidos na sequência do 27 de Maio, e juízes militares deslocam-se do norte ao sul de Angola e contam as vítimas. Um deles, José Nunes, investiga os massacres cometidos no Leste de Angola. Quando chega a Luena, província do Moxico, um prisioneiro do «centro de recuperação», que deveria ser fuzilado no dia seguinte, conta-lhe como decorreu a vida ali durante esse ano.

Centenas de homens tinham morrido na mira da espingarda de Maninga, o chefe do centro. E os que escaparam, lutavam como podiam pela sobrevivência. Por uma mandioca qualquer preso se oferecia para coveiro. E era o próprio que, à noite, fugindo à vigilância dos carcereiros, levava os outros prisioneiros à vala onde se encontravam os corpos dos companheiros. Desenterravam os cadáveres para os comer: era a única forma possível de pôr cobro à fome. «Foi um verdadeiro genocídio», afirma José Nunes. «Em Angola devem ter morrido umas 30 mil pessoas».

Sita Valles acreditava na revolução, e essa aventura levou-a à morte. Passados 15 anos, o seu destino continua envolto em mistério. O governo angolano nunca entregou à família a certidão de óbito, e as notícias variam. Uns dizem que estava grávida quando morreu, outros que não, que teve o filho antes de ser fuzilada, e há mesmo quem afirme que não morreu. «Pode ser que ainda esteja viva», deseja Maria Lúcia, a mãe.

Não foi difícil condená-la, e agora não é difícil desculpá-la. Mendes de Carvalho, embaixador angolano na ex-RDA, acusado de ser um dos principais repressores do 27 de Maio, viu Sita pela última vez no Ministério da Defesa, onde estava a ser interrogada. «Era uma mulher tão linda e fresca, não merecia morrer». Sobe ao palco um único culpado. «A DISA é a responsável pelo massacre que houve em Angola. Só da Juventude do MPLA morreram milhares e milhares de jovens», denuncia o embaixador. Mas o jogo não pára. Pitoco, que foi expulso da polícia secreta em 1979, contra-ataca: «Pergunte ao Mendes de Carvalho quem matou o Fortunato». Pedro Fortunato era o Comissário Provincial de Luanda. Pitoco quer fugir de Angola, sente que a sua vida está por um fio, que o querem matar. O destino não o poupou, está a ficar cego, mas não perdeu vícios antigos: «Se me pagarem, conto a verdadeira história dos mortos do 27 de Maio».

Não tem rebates de consciência, apenas cumpriu ordens; quando actuava não levava a farda da DISA, trajava de militar. O hábito fazia o monge. Pitoco faz equilibrismo, agarra-se ao que pode e joga para a arena mais nomes. Vítor Jeitoeira é o atingido. E este? Que não, que não fez nada, até salvou alguns condenados! Tinha marchado na tropa com Dodó Kitumba, um dos acusados de fraccionismo, gostava dele, e quando descobriu que o outro tinha os dias contados, forjou uma história e vendeu-a a Ludy: «Não o mates, porque o tipo tem diamantes escondidos no valor de 50 milhões de dólares e é o único que nos pode indicar o esconderijo.»

É Eduardo dos Santos, quando assume as rédeas do país, que faz o ajuste de contas. Alguns ministros fiéis ao seu antecessor são afastados do governo. Entre eles, Iko Carreira, ministro da Defesa, acusado por Nito de ser traficante de diamantes. Luís dos Passos, que dirigiu o assalto aos quartéis e a tomada da Rádio Nacional em 27 de Maio, só volta a Luanda em 1990. Durante 13 anos viveu escondido na mata, a norte de Angola. Comeu raízes de árvores, sofreu de paludismo, mas sobreviveu. «Se a DISA não tivesse sido extinta, garanto que ele não ficava organizações internacionais para que o Governo seja levado a esclarecer tudo o que se passou, mas as autoridades de Luanda permanecem mudas.

Em Dezembro último, João Van Dunem, jornalista da BBC, requer ao ministro da Justiça angolano, Lázaro Dias, certidões de óbito do seu irmão José e de Sita. O governante limita-se a remeter o assunto para os seus colegas da Defesa, da Saúde e da Segurança, alegando: «Sabido que o Ministério da Justiça só emite certificados de óbito com base em notas ou nótulas de médicos a atestar o óbito – o que não aconteceu -, solicito a informação sobre se têm algum conhecimento do falecimento das pessoas acima referidas.»

Longe das intrigas de Estado, em Kaleba, Francisco Karicukila envelheceu e perdeu a esperança. Ouviu dizer que a União Soviética, a mãe de todas as revoluções, está moribunda. Também ele acreditou no socialismo e em Neto, mas na sua aldeia os homens trabalham na lavra e bebem vinho de palma para esquecer a fome. A casa onde escondeu Sita está agora abandonada e cercada de capim, o filho que levava as mensagens dos fugitivos também foi fuzilado, e ele foi torturado durante dois anos. Com um sorriso triste, recorda as últimas palavras de Sita: «Fomos traídos, mas um dia haverá igualdade no nosso país.»

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