MPLA: O fim do pensamento mágico – Rui Verde

“Há momentos em que surge uma mudança radical na política. Nessa altura, não importa o que se diga ou faça. Há uma mudança no que o público quer e no que aprova” – assim se pronunciava o primeiro-ministro inglês, James Callaghan, em 1978, nas vésperas de uma estrondosa derrota eleitoral que abriu 11 anos de poder a Margaret Thatcher e ao Partido Conservador.

É a este tipo de mudança estrutural de sentimento político que se assiste em Angola. Parece que não adianta o que o MPLA diga ou faça, pois a população já não se sente em sintonia com o partido que os governa ininterruptamente há 47 anos. Nem é uma questão de vitória ou derrota eleitoral, é um problema de perda da legitimidade primária.

Sempre defendemos que a legitimidade política do MPLA dependia, em primeiro lugar, do seu papel permanente e insistente na luta pela independência e da vitória na guerra civil. Antes de ser uma legitimidade eleitoral, era uma legitimidade histórica. Em termos simples, o MPLA ocupava o poder porque tinha ganho as guerras, e a população reconhecia e aceitava esse direito. Depois de 2002, o MPLA ainda tentou reforçar a sua legitimidade à maneira do Partido Comunista Chinês, assumindo-se como o partido que garantiria o desenvolvimento e o bem-estar da população. Como se sabe, esse objectivo transformou-se num tremendo falhanço, que acabou por levar ao afastamento de José Eduardo dos Santos.

As últimas eleições, em Agosto de 2022, embora ainda ganhas pelo MPLA, demonstraram que a velha legitimidade da guerra entrou em extinção. Hoje, a população já não reconhece ao MPLA um direito automático a exercer governo em virtude das vitórias militares. Obviamente, reconhece ainda menos a capacidade do partido para assegurar o desenvolvimento.

É isto que significa “o fim do pensamento mágico”: já não há uma aura em torno do MPLA que lhe assegure uma espécie de “direito natural” ao poder. O encantamento terminou e deu lugar ao profundo desencantamento. A velha propaganda segundo a qual “o MPLA é o povo e o povo é o MPLA” perdeu o sentido.

Apesar do fim do pensamento mágico, e independentemente da grande contestação aos resultados eleitorais, o partido no poder ainda conquistou mais de 50% dos votos nas últimas eleições.

Continua a haver uma grande massa de população que não se identifica com a oposição. Mesmo desencantada, essa massa votou MPLA ou simplesmente não votou. A base de apoio do MPLA não está sociologicamente em extinção – ela continua a existir, mas tem de ser reformulada, revista e reapresentada.

Para voltar a ganhar eleições confortavelmente, o MPLA deveria mudar de cima a baixo, a começar pela designação, passando pelas pessoas e concluindo nas propostas programáticas.

O primeiro ponto para a revisão da proposta política apresentada pelo MPLA radica na demografia, isto é, na consideração de quem compõe a população angolana. Do ponto de vista político, a maioria de hoje nada tem que ver com a população que viveu 1975 ou 2002.

Juventude angolana no estádio de futebol 11 de Novembro, em Luanda. (DR)

Segundo uma recente análise apresentada pelo demógrafo da Universidade Agostinho Neto, Luiekakio Afonso, a idade média dos angolanos em 2014 era de 20,6 anos e a idade mediana de apenas 16,0 anos. Estes valores muito baixos confirmam a juventude da população angolana. Actualmente, estimar-se que cerca da metade da população (45,8%) tem menos de 15 anos de idade e a idade mediana continua extremadamente baixa (16,8 anos), conforme apresentação de Luiekakio no Congresso de Angolanística de 2020.

A existência de uma população tão jovem, sem memória da guerra, com acesso mais ou menos constante a meios digitais e à informação global, coloca um desafio imenso ao governo. Impõe uma intensa reformulação política, virada para o crescimento económico e para o bem-estar social de todos.

Emprego, saúde e educação estão agora na linha da frente, enquanto combates ideológicos, velhas “guerras” e outras preocupações historicamente relevantes em Angola são remetidas para segundo plano. Ninguém se conforma com o atraso, a pobreza, a captura do Estado por uma pequena elite e o rol de denúncias de corrupção, sobretudo nos mais altos escalões da magistratura judicial.

Por isso, a nova geração, ora representativa da larga maioria da população angolana, não reconhece o pensamento mágico no qual sempre assentou o poderio do MPLA. Esta geração espera e exige outra legitimidade, outra abordagem, mais próxima dos valores actuais de desenvolvimento, bem-estar e realização pessoal.

Conforme refere Luiekakio Afonso , historicamente “os jovens sempre estiveram [de forma mais ou menos constante] à frente dos acontecimentos políticos, económicos e de desenvolvimento do nosso país. Foram eles que combateram a repressão colonial, repeliram com bravura a invasão estrangeira durante a guerra civil, lideraram muito recentemente o processo de sufrágio eleitoral, e agora, vão também liderar (…) o processo geral de desenvolvimento do país.”

Portanto, para se renovar, a primeira transformação do MPLA renovado deve ser de foco e de programa. Quanto ao foco, o MPLA não pode persistir nos velhos grupos de interesse cultivados à volta do poder (autoproclamados de elites), que influenciavam uma população temerosa da guerra. É preciso voltar-se para a massa juvenil em ebulição, procurando o apoio de todos os jovens quadros, muitos formados no estrangeiro, que têm ideias para o país e querem contribuir. Jovens médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, comunicadores, muitos sem filiação partidária, têm de ser chamados a dar o seu contributo político e sentir-se representados num novo partido.

Ao mesmo tempo, as necessidades básicas da população na área do saneamento, da habitação, dos transportes, da saúde e da educação têm de passar para o primeiro estrato das prioridades das políticas públicas.

O programa partidário tem de se adaptar aos tempos modernos e centrar-se nas ambições das angolanas e dos angolanos, um programa de progresso abrangente, que compagine a economia de mercado e a protecção social com a espiritualidade específica da angolanidade.

Obviamente, a segunda transformação consistiria na abertura e agregação de valor. Hábitos do passado, redes de nepotismo, promoção clientelar, actividades corruptas e toda a panóplia que corroeu o partido têm de ser abandonados. Um novo partido terá de se abrir aos actuais independentes e a todos que se revejam no seu programa.

A diversidade de participações deve ser a linha forte de refundação, buscando-se antigos activistas, liberais e conservadores, trabalhadores, intelectuais e segmentos da classe média que, apesar de origens díspares, compartilhem a crença central na modernização de Angola dentro de uma sociedade de mérito, numa economia de mercado, satisfazendo as necessidades básicas da população.

Existem na história vários exemplos destas transformações de sucesso, como na Alemanha do pós-Segunda Guerra Mundial, onde o antigo Partido do Centro — que de alguma forma permitiu a ascensão de Hitler ao poder — se converteu na máquina reformista chamada CDU (União Democrata-Cristã, um partido muito mais abrangente e alargado), a que pertenceu o fundador da Alemanha Federal, Konrad Adenauer e, recentemente, Angela Merkel. Também há um exemplo de insucesso: a mudança operada por Marcelo Caetano em relação ao partido do regime ditatorial português. Marcelo mudou o nome de União Nacional para Aliança Nacional Popular, anunciando novos ventos e objectivos. Contudo, a modificação substantiva não aconteceu e apenas houve um novo nome – uma mera transformação cosmética. O resultado é sobejamente conhecido: a revolução do 25 de Abril de 1974 e a deposição de Marcelo Caetano.

Fonte: Maka Angola

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