“Quem manda na TPA é a Presidência e os Serviços de Segurança” – José Guerreiro

José Fernandes Guerreiro é um intelectual angolano e um quadro ideológico da cúpula dirigente do MPLA, o partido governante desde a independência nacional. Foi presidente do conselho de administração da Televisão Pública de Angola (TPA), de onde saiu, ao fim de 11 meses, porque “o Presidente João Lourenço não gostou de uma reportagem exibida” pelo canal público “sobre o combate à corrupção”.

Guerreiro acaba de lançar as suas memórias, onde decidiu contar toda a verdade sobre alguns momentos históricos do seu partido, que, segundo afirma, tem uma tradição de “intolerância”.

“EU, O MEU PERCURSO, O MEU PARTIDO” é o título do livro de memórias e reflexões escrito por um dos mais importantes quadros do partido que governa o país há mais de 47 anos e que foi, durante vários anos, responsável máximo do departamento das estruturas de base dos militantes do partido, na sede do “Kremlin”, na Av. Ho Chi Minh, portanto, alguém com conhecimentos profundos sobre os vários acontecimentos nos corredores do poder.

Trata-se de uma narração autobiográfica, onde o autor narra com precisão factos históricos, desde as escaramuças internas no MPLA, passando pela época de partido Estado e as perseguições aos dias de hoje. Em retrospectiva relembra os vários períodos “sangrentos” no MPLA, desde os primórdios da década 1960, quando Agostinho Neto substitui Mário Pinto de Andrade na presidência do então movimento anticolonial.

José Guerreiro faz um recuo ao longínquo ano de 1962, data da cisão entre Viriato da Cruz e a direcção do movimento, então dirigida por Neto. Narra ainda um episódio protagonizado por “Monstro Imortal” (Jacob João Caetano) e outros guerreiros, quando, em 1972, nas matas do Congo Brazzaville, prenderam Lúcio Lara, a quem atribuíram as culpas das “dificuldades na luta” em Léopoldville, actual Kinshasa (RDC), “bem como pelo descontentamento pela participação na luta de brancos e mestiços”. Um episódio narrado com precisão pelo historiador Jean-Michael Mabeko Tali, o congolês conhecido como “filho de Lúcio Lara”, na sua obra “O MPLA perante si próprio”.

“A história do MPLA” está repleta de “intolerância”
José Guerreiro conta também um episódio de perseguição contra os jovens quadros e funcionários da sede do partido, ocorrido nos primeiros meses da década de 1982. E qual foi a razão? “Aproximando-se a data de aniversário do Presidente José Eduardo dos Santos, os militantes da sede acharam que a melhor forma de o homenagear seria presenteá-lo (…) com algo que lhe transmitisse ideias, sugestões, preocupações comuns, alertas, em função do meio envolvente e dos factores condicionantes do desenvolvimento do Partido e do País”, lê-se na página 126.

Entretanto, segundo o autor, tal ousadia não agradou à cúpula conservadora do partido, nomeadamente Alexandre Rodrigues “Kito”, Mendes de Carvalho, Roberto de Almeida e Maria Mambo Café, que encontraram nisso um “fundamento partidariamente legal” e acharam que era hora de desferir um golpe político a jovens e quadros com ideias ‘esquisitas’ sobre a ideologia e a organização e funcionamento do partido”. E acrescenta: “todos os dirigentes do MPLA (falo do seu Secretariado e do Bureau Político), à excepção de Ambrósio Lukoki, se encolheram, mesmo sabendo que estavam a ser condenados e sacrificados os melhores quadros e trabalhadores da sede do Partido”.

Por estes e outros factores descritos no seu livro de memórias, Guerreiro não tem dúvidas: “Ao lermos hoje alguns depoimentos de historiadores e de participantes da constituição do MPLA e do desenrolar da luta de libertação nacional, ao ter conhecido pessoalmente alguns deles, de quem ouvi histórias, factos e interpretações das fases de desenvolvimento do processo revolucionário, não será com certeza muito difícil chegar à conclusão de que um dos factores dominantes na história do MPLA, tem sido a intolerância, falta de diálogo sincero, algum défice de democracia interna e um exercício de direcção autocrático, centralizador e avesso a críticas”, escreve o autor de 66 anos, dos quais 48 de militância activa.

José Guerreiro, antigo PCA da TPA e militante do MPLA. (DR)

Admitindo ter consciência das consequências e eventuais interpretações negativas que poderão ser feitas aos factos arrepiantes trazidos por si à tona, antevendo mesmo que, “como habitualmente, não será compreendido o conteúdo” da sua obra e que lhe será arremessado as já conhecidas frases “está cuspir no prato de comida que lhe deram” e “fala assim porque foi exonerado”, Guerreiro dá logo uma resposta antecipada a estes camaradas: “Falo assim não por ter sido exonerado, fui exonerado porque penso assim”.

Quem manda na TPA é o palácio presidencial…
Na Televisão Pública de Angola, onde desempenhou o cargo de presidente do conselho de administração, José Guerreiro descreve no livro que a televisão paga com o dinheiro de todos os contribuintes angolanos “tem andado ao sabor dos ventos, ao longo dos anos”.

“A TPA não tem e nunca teve vida própria e autonomia! E essa falta de vida própria, de parcialidade da linha editorial, de incumprimento das regras e princípios do jornalismo, da deontologia profissional, têm a ver, não basicamente com o excesso de zelo dos jornalistas (o que é ofensivo para eles, face às pressões directas, indirectas ou subalimentares que sofrem), mas porque a mesma é dirigida, directamente e/ou indirectamente, pelo Ministério de Tutela, pelo Partido no Poder, por detrás dos serviços de segurança e por estruturas do Palácio Presidencial”, escreveu. E não ficou por aí.

O antigo PCA da TPA, que desempenhou ainda funções relevantes no quadro da campanha eleitoral do MPLA nas eleições de 1992, 2008 e 2012, trouxe ainda à tona o que muitos têm apenas a noção, mas que, no seu caso, fala por conhecimento de causa. “A comunicação social pública e as suas redacções, quando estão em causa assuntos de natureza política e, também, alguns de natureza económica e social, não têm autonomia para o exercício da profissão”, escreve no capítulo dedicado a breves reflexões sobre a TPA.

José Guerreiro, antigo PCA da TPA ao lado de João Melo, antigo Ministro da Comunicação Social e o Presidente João Lourenço. (DR)

Soube da sua exoneração 15 minutos antes da divulgação

Ao longo das 290 páginas, o autor conta, pela primeira vez, as circunstâncias em que foi afastado da direcção da principal estação televisiva pública do País. Antes, porém, lembra o momento em que foi convidado pelo então ministro do extinto ministério da Comunicação Social João Melo, numa altura em que se encontrava em visita privada a Cabo Verde.

“Recebi um e depois sucessivos telefonemas do ministro João Melo (de quem era e sou amigo), primeiro a convidar-me a assumir o cargo de PCA da TPA, depois a trocar ideias sobre a composição das equipas dos vários órgãos de comunicação social”… Quando assumiu as funções, encarou “o desafio com muito entusiasmo”, orgulhando-se de ter colocado a TPA ao serviço do País no quadro das “mudanças políticas e esperança que se vivia no período de transição da presidência de José Eduardo dos Santos para a de João Lourenço”.

Tudo parecia andar numa perfeição, quando, às 19h45, do dia 15 de Outubro de 2018, momento em que se preparava para jantar, é convocado pelo ministro Melo para uma reunião de emergência na sede da estação televisiva. No encontro, juntou-se Francisco Mendes, então administrador de conteúdos (o mais directo e alto responsável editorial do Telejornal), que tinha acabado de chegar do Palácio.

Colocado numa situação complicadíssima, onde a sua opinião não foi dita nem achada, a João Melo coube apenas o papel de mensageiro, informando “que o Senhor Presidente João Lourenço comunicara, no final de uma reunião convocada com alguns Ministros, para outros efeitos, que dera instruções para que eu fosse exonerado”. “O que ele, Ministro, teria depreendido das parcas palavras que ouviu do Senhor Presidente a propósito é que estaria descontente com uma reportagem exibida no Telejornal da TPA no dia anterior, relativa ao combate à corrupção”, escreve Guerreiro.

Convicto das suas obrigações profissionais e, claro, algo desapontado com o que acabara de lhe ser transmitido, José Guerreiro não saiu daquele gabinete para onde fora chamado, sem antes dizer o seguinte: “Se isto fosse um País a sério, tu, Ministro e tu, Francisco Mendes, deveriam de imediato pedir demissão”. De seguida, José Guerreiro abandonou o gabinete e voltou para o local onde estava, para concluir o jantar e ouvir no Telejornal a leitura do Despacho Presidencial da sua exoneração.

Fonte: O Telegrama

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