Supremo Tribunal angolano ordenou arresto de bens avaliados em mil milhões de dólares, cerca de 941 milhões de euros, mas isto não significa que revertam a favor do Estado, lembra analista. Entretanto, reacendeu-se o debate sobre a selectividade da justiça.
O arresto, segundo o despacho assinado pelo juiz Daniel Modesto Geraldes a 19 de Dezembro, surge ao abrigo das leis angolanas e do artigo 31º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. O acórdão explica que há “indícios de peculato, tráfico de influência, participação económica em negócio e branqueamento de capitais, previstos e puníveis”.
IGAPE indicado como fiel depositário
Nesta ordem, o Tribunal indica fiel depositário das participações sociais das empresas acima referidas, com excepção da empresa EMBALVIDRO- Indústria (SU), Lda, que sejam nomeados os próprios Conselhos de Administração. Requer, assim, para fiel depositário da EMBALVIDRO que seja nomeado o Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE), nos termos da al.i) do artigo 4º do Decreto Presidencial nº 72/20, de 29 de Março.
Em relação às vantagens do facto ilícito, refere que indiciam fortemente que a UNITEL S.A é uma sociedade comercial angolana, constituída a 25/08/1999, com sede em Luanda-Angola, e tem como objecto social a instalação, exploração e prestação de serviços de telecomunicações e outras actividades conexas complementares.
Até recentemente, a UNITEL S.A foi participada por quatro accionistas cada um com 25% do capital social, nomeadamente: MERCURY-MSTELECOM-SERVIÇOS de TELECOMUNICAÇÕES, S.A, uma empresa subsidiária da empresa pública angolana Sonangol, E.P;
A VIDATEL LTD, constituída a 14/12/1999, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, cuja beneficiária efectiva é Isabel dos Santos; entre 14/12/1999 e 16/11/2017, Tatiana Cergueevna Regan, mãe de Isabel José dos Santos, constou como única directora da VIDATEL LTD; a partir de 26/11/2017, Luís A. Davis constou como presidente e director da sociedade em causa e Pamela D. Haal como tesoureira, secretária e directora;
A GENI, S.A, cujo beneficiário efectivo é o general Leopoldino Fragoso do Nascimento; e, PT VENTURES SGPS, S.A, sociedade de direito português, detida até Janeiro de 2020 pela AFRICATEL HOLDING, B.V, esta última uma subsidiária da operadora de telecomunicações brasileira OI, S.A.
Arresto anterior
Em Dezembro de 2019, as acções da UNITEL S.A detidas pela VIDATEL LTD foram arrestadas pela justiça angolana, no âmbito do processo nº 3301/2019-C. Em Janeiro de 2020, a Sonangol E.P adquiriu as acções da UNITEL SA que pertenciam à PT VENTURES SGPS, SA.
Actualmente as acções da VIDATEL LTD e da GENI, SA foram apreendidas pelo SENRA, pelos seguintes factos: a Sonangol, EP, em data não determinada, iniciou um projecto de telecomunicações com o objectivo de obtenção da licença GSM para telefonia móvel, tendo celebrado um contrato com a empresa de direito inglês Ericsson, para o fabrico e instalação dos respectivos equipamentos;
Neste âmbito, foi criado um grupo de trabalho constituído essencialmente por funcionários da Sonangol, EP; Todo o investimento para a instalação da infra-estrutura da rede GSM foi efectuado pela Sonangol, cujo montante apurado é superior a USD 48 736 157,00. Entretanto, após a conclusão do projecto, por razões ainda desconhecidas, estranhamente a licença de rede GSM não foi atribuída a Sonangol, que na verdade é a real investidora, tendo sido entregue a UNITEL SA;
Essencialmente, apenas eram accionistas da UNITEL, SA a PT VENTURES SGPS, SA, VIDATEL LIMITD e a GENI, SA. Facto é que os accionistas acima mencionados, excepto a PT VENTURES SGPS, SA, nunca efectuaram qualquer pagamento a favor da Sonangol a título de devolução, tendo apenas recebido facturas referentes à aquisição dos equipamentos e outras despesas que as pagou e reconheceu como encargos, investimentos e obrigações.
Como “prémio de consolação”, a Sonangol, EP, através da empresa Mercury, tornou-se accionista da UNITEL, após celebração de um contrato de permuta, passando a deter 25% do capital social;
Ou seja, o investimento para a criação da UNITEL SA pertenceu exclusivamente à Sonangol e esta tornou-se sócia através da sua participada Mercury, exactamente com o mesmo número de acções que outros accionistas.
Concluindo-se que dado o investimento inicial pertencer à Sonangol, os proventos do negócio (dividendos) também deveriam pertencer ao Estado e não entregues como foram durante anos à GENI e VIDATEL LIMITED. Existindo claramente indícios do crime de peculato, tráfico de influência, previstos e puníveis, nos termos dos artigos 362º, 364º, do C.P e 82º da Lei nº 5/20, de 27 de Janeiro, respectivamente.
Isabel dos Santos goza de “fórum especial”
Para o jurista angolano Carlos Cabaça, o facto de ter sido o Tribunal Supremo a avançar com o procedimento significa que a engenheira Isabel dos Santos goza de um “fórum especial”, uma vez que “a decisão não começou a ser feita num tribunal de primeira instância”.
O arresto, explica o especialista, é “uma garantia do Direito que previne a venda ou a sonegação de um bem de um processo”, mas “não significa que [os valores ou bens arrestados] revertem a favor do Estado”.
“Vamos ter de aguardar até que o processo tome o seu curso final e depois o tribunal vai decidir se sai do arresto para a Execução”, afirma Carlos Cabaça.
Cabo Verde, Moçambique e São Tomé chamados a cooperar
A filha do antigo Presidente angolano José Eduardo dos Santos será notificada apenas depois do arresto. “Se o Tribunal eventualmente notificar antes do arresto, naturalmente que o arguido, no caso a engenheira Isabel dos Santos, podia sonegar esses valores e o Estado angolano não teria a possibilidade de arrestar, porque é impossível arrestar aquilo que não tem”, explica o jurista.
O tribunal ordenou também o arresto das participações da empresária em empresas sedeadas em Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. “Agora, vamos esperar que, no âmbito daquilo que tem sido a cooperação entre Angola e estes países, estes sejam céleres, para que se possa também temporariamente bloquear as contas de Isabel dos Santos e garantir a efectivação do arresto”, aponta Carlos Cabaça.

(DR)
Justiça selectiva?
O caso Isabel dos Santos voltou a trazer à discussão a questão da alegada seletividade da luta contra a corrupção decretada pelo Presidente João Lourenço em setembro de 2017, no seu primeiro mandato.
João Malavindele, coordenador da organização não-governamental OMUNGA, sedeada em Benguela, diz que na governação do então Presidente José Eduardo dos Santos muitos ex-titulares de cargos públicos beneficiariam de bens e dinheiro do Estado. Por isso, continua, “não seria nenhum escandâlo se hoje víssemos outras pessoas a contas com a justiça, além da família dos Santos”.
“É bem verdade que os processos judiciais também levam o seu tempo”, rassalva. “É preciso pesquisa, se não, entraríamos naquilo que muitos chamam de caça às bruxas”.
Manuel Vicente, ex vice-presidente angolano, é frequentemente citado como exemplo deste alegado processo seletivo. “Não vamos aqui esconder”, afirma Malavindele. “Havia há dois, três anos pessoas que gozavam de imunidade que não podiam ser tocadas pela justiça, como é o caso do engenheiro Manuel Vicente. Agora terminada que está esta questão da imunidade, parece que não existe neste momento nenhum processo”, conclui o responsável da OMUNGA.
Com agências