Após pouco mais de um mês no poder, o que deixa Liz Truss atrás de si?

Depois de dias de forte pressão neste sentido, a Primeira-ministra britânica Liz Truss anunciou hoje a sua demissão. A saída na semana passada do seu antigo ministro das Finanças em contexto de forte rejeição da sua estratégia económica e a demissão ontem da sua ministra do Interior, em desacordo com a sua linha, tornaram a sua posição dificilmente sustentável.

As baixas drásticas de impostos, nomeadamente para as franjas mais ricas da população decididas pelo governo de Truss em paralelo com o corte de certos subsídios, num contexto de forte inflação e endividamento do país, geraram um sentimento de forte rejeição não só por parte dos mercados como por uma parte substancial da população britânica. A nomeação de um novo ministro das finanças, Jeremy Hunt, não foi suficiente para restaurar a confiança naquele que acabou por ser o governo com o mandato mais curto da história do Reino Unido.

Coloca-se agora a questão da sucessão de Liz Truss, numa altura em que o calendário eleitoral prevê legislativas apenas em 2024. Os conservadores, em má postura nas sondagens após os mandatos caóticos de Boris Johnson e de Liz Truss, pretendem ainda assim eleger um novo chefe a nível interno e evitar o cenário de legislativas antecipadas que poderiam resultar numa derrota humilhante frente aos trabalhistas. Contudo isto coloca problemas de legitimidade democrática, refere Francisco Bettencourt, professor no King’s Colledge de Londres, com quem a RFI abordou o legado político de Truss e também a situação económica em que se encontra o país.

RFI: Qual é o contexto político que se vive actualmente no Reino Unido?

Francisco Bettencourt: A situação é de caos porque as últimas políticas ensaiadas pela Primeira-ministra Lizz Truss foram completamente rejeitadas pelos mercados financeiros quando eram supostas activar esses mercados financeiros e encorajar um maior investimento.

Foi o oposto que aconteceu. Todos os movimentos financeiros foram no sentido de retirar investimento e aumentar o preço dos empréstimos ao governo britânico. Portanto, foi uma completa rejeição das políticas financeiras e fiscais propostas que significavam cortar os impostos, sobretudo para os mais ricos, e criar uma situação de completa dependência do Estado face a empréstimos.

A ideia de aumentar de maneira desproporcionada a dívida pública sem qualquer quantificação, isto era um salto no escuro baseado na ideia muito neoliberal segundo a qual se se reduzir os impostos drasticamente, as pessoas vão investir mais. Era uma política de cortes de impostos mas também de cortes de apoios do Estado a vários níveis que iriam prejudicar extraordinariamente a maioria da população e curiosamente os mercados financeiros rejeitaram tudo isto e a população, obviamente, percebeu perfeitamente o que é que estava a vir no futuro. Eu devo dizer que isto é a face mais feia do Brexit. Isto é a consequência do Brexit claramente.

Estas políticas radicais neoliberais que tinham sido abandonadas depois da crise financeira e económica de 2008 foram retomadas de uma maneira radical agora sem qualquer contexto, inclusive num contexto internacional segundo o qual mesmo a direita tem vindo a abandonar as políticas neoliberais.

Portanto, tudo isto é extremamente estranho. É evidente que o Brexit tinha várias componentes. Tinha a componente da classe trabalhadora que tinha medo da competição dos trabalhadores europeus que eram mais qualificados do ponto de vista técnico, tinha também medo da partilha dos benefícios sociais eram -e são ainda- significativos no Reino Unido, enquanto a parte mais rica daqueles que votaram pelo Brexit pretendia uma desregulamentação do mercado, pretendia uma redução de impostos e pretendia libertar-se das regras sociais da União Europeia porque, apesar de tudo, na União Europeia ainda temos um mínimo de regras de apoio aos mais desfavorecidos evitando desemprego maciço.

A parte rica dos que votaram no Brexit tinha este propósito de libertar-se dessas regras da União Europeia de maneira a ter aqui um capitalismo selvagem e este governo correspondeu inteiramente a estas perspectivas da parte rica do Brexit. Só que foi derrotado imediatamente e Truss teve de fazer uma reviravolta total e é a fase mais negra resultante do Brexit.

RFI: Os trabalhistas podem tirar algum proveito desta situação?

Francisco Bettencourt: Isto é uma bênção para os trabalhistas porque eles nunca tiveram sondagens de opinião tão favoráveis, embora o Keir Starmer seja um líder pouco carismático e a opinião favorável seja muito diminuta. Agora, o voto ou as opiniões favoráveis aos trabalhistas resultam da queda completa dos conservadores na opinião pública. Basicamente, a maioria da população britânica tem empréstimos aos bancos para pagar por causa das casas e não só aqueles que compraram casas, como aqueles que arrendam.

A política anterior do governo significava um aumento grande de juros e dos pagamentos aos bancos. Mexeu no bolso das pessoas e as pessoas revoltaram-se. Portanto, as sondagens de opinião dão uma maioria enorme aos trabalhistas nesta conjuntura de protesto. Agora, depende do que se vai passar. As eleições só estão previstas daqui a dois anos.

O problema é que os conservadores ao quererem mudar o Primeiro-ministro estão numa situação muito precária porque já o fizeram, já mudaram o Boris Johnson. Mudar outra vez, poucas semanas depois, a Primeira-ministra levanta o problema da legitimidade democrática porque -é o argumento dos trabalhistas, e têm razão- neste momento não se trata de mudar de novo o Primeiro-ministro por uma minoria ínfima. Quem votou na alteração do Boris Johnson para Liz Truss, foi uma ínfima minoria de membros do partido conservador que eram menos de 200 mil cuja grande maioria são pessoas de muita idade.

Votaram na Liz Truss porque propunha cortes radicais de impostos. Era uma coisa sem grande informação. Voltar a esse processo seria um novo insulto às bases democráticas do sistema. Os trabalhistas reclamam que se houver mudança terá que ser por via de eleições gerais e o povo ser chamado a dar a sua opinião. Este argumento é difícil de contrariar.

RFI: Qual é a situação económica actual do Reino Unido? Passou de um dos pilares da União Europeia para um país em dificuldade.

Francisco Bettencourt: Claramente e as últimas políticas agravaram substancialmente a situação. Os empréstimos do governo inglês que são substanciais têm agora que ser pagos com juros mais altos, os prejuízos em relação às empresas são também evidentes.

A situação económica não é dramática, mas li há pouco um artigo dizendo que as exportações do Reino Unido para a União Europeia estão 17% abaixo daquilo que poderia ser sem Brexit. A situação é difícil porque -isto sabia-se- aqueles que lutaram para a manutenção do Reino Unido na União Europeia disseram claramente que as grandes relações económicas tinham que ser com os vizinhos.

É uma fantasia pensar que melhoravam a relação com a Nova Zelândia com a Austrália, com os Estados Unidos ou com a China, ainda por cima com a China com a qual o Reino Unido não tem uma relação fácil dado o caso de Hong Kong. Todas estas fantasias do Brexit estão a chocar contra o muro da realidade.

A situação não é ainda uma situação trágica do ponto de vista económico, não estamos de regresso aos anos 90 em que houve de facto uma crise financeira enorme e em que o próprio Reino Unido teve que ir procurar apoio ao Fundo Monetário Internacional, mas a situação não é sorridente.

Por RFI

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